A tentação de Matviei Terekhov
“No dia da Anunciação, após a passagem do trem postal, Matviei sentou-se na cantina da estação, bebeu chá com limão e falou.
Ouviam-no o garçom e o guarda Júkov.
- Eu, devo assinalar para os senhores – comentou Matviei - , já na infância era apegado à religião. Tinha apenas 12 anos e já lia o texto dos apóstolos na igreja, meus pais ficavam imensamente felizes, e todo verão, em companhia da finada mãezinha, íamos à peregrinação. Naquela época, outros meninos cantavam, pescavam caranguejos, mas eu, enquanto isso, ficava com a mãezinha. Os adultos me aprovavam e eu mesmo achava agradável ter um comportamento tão bom. Quando a mãezinha me deu sua bênção para eu ir trabalhar na fábrica, eu cantava a voz de tenor no nosso coro, nos intervalos do serviço, e para mim não existia prazer maior do que esse. É óbvio que eu não bebia vodca, não fumava, conservava o meu corpo puro, mas essa orientação de vida, como se sabe, não agrada ao inimigo do gênero humano, e ele, o maldito, pôs mãos à obra para me perder e começou a perturbar minha cabeça, exatamente como faz hoje com o meu primo. Para começar, fiz promessa de não comer refeições completas nas segundas-feiras e de não ingerir carne em nenhum dia, e no geral, com o correr do tempo, passei a alimentar várias fantasias. Os santos padres determinaram que na primeira semana da quaresma até o sábado só se deve comer pão ázimo, mas não é pecado para os trabalhadores e para as pessoas fracas beber chá, porém eu, até o domingo, não punha na boca nem uma migalha, e depois, durante toda a quaresma, não me permitia de maneira alguma tomar azeite, e na quarta-feira e na sexta-feira não comia rigorosamente nada. E assim também nos jejuns menos importantes. Naquele tempo, no jejum de São Pedro, os operários bebiam sopa de repolho com percas enquanto eu, no meu canto, roia um pão torrado. A força varia de uma pessoa para outra, é natural, mas, no que me toca, digo o seguinte: os dias de jejum não eram difíceis para mim, eu até preferia que fossem mais rigorosos do que mais folgados. Só se sente vontade de comer nos primeiros dias do jejum, depois a pessoa se habitua, tudo se torna cada vez mais fácil e, veja bem, no fim de uma semana, a coisa até que não parece tão ruim assim, nas pernas há um torpor tão grande que dá a sensação de não se estar sobre a terra, mas sim sobre uma nuvem. Além disso, eu me impunha todo tipo de penitência: levantava-me de noite e ficava de joelhos, carregava pedras pesadas de um lugar para outro, andava descalço na neve e até prendia correntes no corpo. Só que, decorrido um certo tempo, fui um dia me confessar a um padre e então, de repente, me vi dominado por uma fantasia: aquele sacerdote, pensei, era casado, comilão e fumante; como ele poderia ouvir minha confissão e com que autoridade poderia absolver meus pecados se era mais pecador do que eu? Enquanto eu me abstinha até do azeite, ele com certeza comia esturjão. Procurei um outro padre, e esse, como se fosse de propósito, era balofo, vestia uma batina de seda que farfalhava como as roupas de uma senhora e além do mais cheirava a tabaco. Fui ao mosteiro para fazer o jejum que antecede a confissão e lá meu coração ficou inquieto, tudo dava a impressão de que os monges não viviam em conformidade com as regras monásticas. Depois disso, não consegui de maneira alguma encontrar uma missa que me agradasse: em um lugar, celebravam depressa demais; no outro, veja só, não cantavam como se deve; em um terceiro, o sacristão tinha a voz fanhosa... Um dia aconteceu, e que Deus perdoe este pobre pecador, de eu estar em uma igreja e meu coração tremer de cólera. Como se pode pensar em rezar desse jeito? E me parecia que as pessoas na igreja não faziam o sinal da cruz direito, não ouviam a missa direito; todos que eu olhava, ou estavam bêbados, ou eram comilões, ou fumantes, ou depravados, ou viciados em jogar baralho, e só eu vivia de acordo com os mandamentos. O demônio é astuto e não dorme, tudo isso cresceu em mim cada vez mais, parei de cantar no coro e já não tinha vontade nenhuma de ir à igreja; eu me imaginava como um homem virtuoso e a igreja, por sua imperfeição, não servia para mim, ou seja, à semelhança do anjo decaído, eu, em meu orgulho, me julgava de um primor inconcebível. Depois disso, comecei a tomar algumas iniciativas para criar a minha própria igreja. Aluguei de uma pequeno-burguesa surda um aposento minúsculo, longe da cidade, perto do cemitério, e montei um oratório, tal como na casa do meu primo, só que eu tinha castiçais e um turíbulo de verdade. Nesse meu santuário, eu seguia os preceitos dos mosteiros do monte Athos, ou seja, todo dia as matinas começavam obrigatoriamente a meia-noite e, nas doze festas mais veneráveis, as vésperas duravam dez ou mesmo doze horas. Todavia, enquanto os monges, segundo as regras, por ocasião da leitura dos Salmos e do Velho Testamento, podem ficar sentados, eu queria ser mais agradável a Deus do que eles e me mantinha de pé o tempo todo. Lia e cantava com voz arrastada, com lágrimas, suspiros, de braços erguidos, e logo depois da prece, sem nem sequer dormir, eu ia para o trabalho e não parava de rezar, mesmo durante o serviço. Assim, a notícia correu pela cidade: Matviei é santo, Matviei cura os doentes e os loucos. É claro que não curei ninguém, mas é sabido que, tão logo surge um cisma e uma heresia assim, as mulheres não dão mais sossego. Ficam iguais a moscas no mel. Diversas mulheres do povo, jovens e velhas, acostumaram-se a vir me visitar, punham-se aos meus pés para me saudar, beijavam minhas mãos e gritavam que eu era um santo e assim por diante, e uma delas chegou ao ponto de enxergar uma auréola acima da minha cabeça. O oratório começou a ficar pequeno, aluguei um cômodo maior e entre nós formou-se uma autêntica torre de Babel, o demônio se apossou de mim definitivamente e, com seus pés de casco fendido, vedou a luz dos meus olhos. Era como se tivéssemos todos ficado possessos. Eu lia as orações, as mulheres jovens e velhas cantavam e, desse modo, por ficarem muito tempo sem comer e sem beber, por permanecerem de pé 24 horas seguidas ou mais, elas de repente começavam a ter uma tremedeira, como que atacadas pela febre, depois disso uma mulher aqui e outra ali deixavam escapar um grito, e era medonho! Eu também me sacudia todo, como um judeu na frigideira, e nem mesmo sabia por que razão, e nossas pernas começavam a pular. Espantoso, de fato: sem que a gente quisesse, as pernas pulavam e os braços abanavam; e, depois disso, entre gritos e vozes esganiçadas, todos dançávamos e corríamos até não agüentar mais. Dessa forma, em meio a um desvario selvagem, eu me afundei na depravação.
O guarda pôs-se a rir. Porém, ao notar que mais ninguém ria, ficou sério e disse:
- É a seita dos bebedores de leite. Li que no Cáucaso são todos assim.
- Mas nenhum raio veio me fulminar – prosseguiu Matviei, depois de fazer o sinal da cruz, voltado para o ícone, e de movimentar os lábios rapidamente. – No outro mundo, minha falecida mãezinha deve ter rezado por mim. Quando todos na cidade já me veneravam como a um santo e até as damas e os senhores nobres haviam começado a me visitar às escondidas, em busca de consolo, certo dia fui à casa do nosso senhorio, Óssip Varlâmitch, pedir perdão, pois era o dia do perdão, e ele então fechou a porta à chave e ficamos nós dois sozinhos, cara a cara. E ele começou a me recriminar severamente. Tenho de salientar para os senhores que Óssip Varlâmitch não possuía instrução, mas era um homem de vasta inteligência e todos o respeitavam e temiam, porque levava uma vida austera, piedosa e era muito trabalhador. Tinha sido prefeito da cidade e estaroste durante uns vinte anos, talvez, e fez muita coisa boa; calçou de cascalho a rua Novo-Moscóvskaia inteira, pintou a catedral e revestiu as colunas com uma imitação de malaquita. Porém, depois de trancar a porta, ele me disse: “Há muito tempo que quero pôr minhas mãos em você, seu isso e aquilo... Você acha que é um santo? Não, você não é santo coisa nenhuma, mas sim um apóstata, um herege e um canalha!”. E continuou a falar assim por muito tempo... Não sou capaz de expressar para os senhores o modo como ele falava, tinha um jeito intelectual, como se lesse em um livro, e era muito comovente. Falou durante duas horas. Ele me impressionou com as suas palavras, os meus olhos se abriram. Eu ouvi, ouvi e de repente me pus a soluçar! “Seja um homem comum”, disse ele, “coma, beba, vista-se e reze como todo mundo, tudo que estiver fora do habitual vem do diabo. As suas correntes”, disse ele, “vêm do diabo, os seus jejuns vêm do diabo, o seu oratório vem do diabo; tudo isso é vaidade”, disse ele. No dia seguinte, a primeira segunda-feira da quaresma, Deus me fez cair doente. Fiquei abatido, levaram-me ao hospital; eu sofria ao extremo, chorava amargamente e tremia. Pensei que, do hospital, iria direto para o inferno e por pouco não morri. Padeci no leito da minha enfermidade durante seis meses e, logo que recebi alta, passei a cumprir minhas devoções da maneira devida e me tornei de novo um homem. Óssip Varlâmitch me mandou de volta para minha casa, e disse: “Lembre-se, Matviei, aquilo que está fora do habitual vem do diabo”. E agora eu como e bebo, igual a todo o mundo, e rezo, igual a todo o mundo... Se agora, por acaso, encontro um padre que cheira a tabaco ou a vinho, não me arrogo o direito de condená-lo, porque um padre é um homem como qualquer outro. Mas, assim que começam a espalhar que apareceu um santo em uma cidade ou em uma aldeia, um homem que dizem ficar semanas sem comer e que estabeleceu regras próprias de culto, já sei de onde vem tudo isso. Eis aí, meus senhores, a história de minha vida. Agora eu também, como Óssip Varlâmitch, não canso de dar bons conselhos ao meu irmãozinho e à minha irmãzinha, e os repreendo, mas é o mesmo que pregar no deserto. Deus não me deu esse dom.”
(Anton Tchekhov, O Assassinato)
Tradução de Rubens Figueiredo
Ouviam-no o garçom e o guarda Júkov.
- Eu, devo assinalar para os senhores – comentou Matviei - , já na infância era apegado à religião. Tinha apenas 12 anos e já lia o texto dos apóstolos na igreja, meus pais ficavam imensamente felizes, e todo verão, em companhia da finada mãezinha, íamos à peregrinação. Naquela época, outros meninos cantavam, pescavam caranguejos, mas eu, enquanto isso, ficava com a mãezinha. Os adultos me aprovavam e eu mesmo achava agradável ter um comportamento tão bom. Quando a mãezinha me deu sua bênção para eu ir trabalhar na fábrica, eu cantava a voz de tenor no nosso coro, nos intervalos do serviço, e para mim não existia prazer maior do que esse. É óbvio que eu não bebia vodca, não fumava, conservava o meu corpo puro, mas essa orientação de vida, como se sabe, não agrada ao inimigo do gênero humano, e ele, o maldito, pôs mãos à obra para me perder e começou a perturbar minha cabeça, exatamente como faz hoje com o meu primo. Para começar, fiz promessa de não comer refeições completas nas segundas-feiras e de não ingerir carne em nenhum dia, e no geral, com o correr do tempo, passei a alimentar várias fantasias. Os santos padres determinaram que na primeira semana da quaresma até o sábado só se deve comer pão ázimo, mas não é pecado para os trabalhadores e para as pessoas fracas beber chá, porém eu, até o domingo, não punha na boca nem uma migalha, e depois, durante toda a quaresma, não me permitia de maneira alguma tomar azeite, e na quarta-feira e na sexta-feira não comia rigorosamente nada. E assim também nos jejuns menos importantes. Naquele tempo, no jejum de São Pedro, os operários bebiam sopa de repolho com percas enquanto eu, no meu canto, roia um pão torrado. A força varia de uma pessoa para outra, é natural, mas, no que me toca, digo o seguinte: os dias de jejum não eram difíceis para mim, eu até preferia que fossem mais rigorosos do que mais folgados. Só se sente vontade de comer nos primeiros dias do jejum, depois a pessoa se habitua, tudo se torna cada vez mais fácil e, veja bem, no fim de uma semana, a coisa até que não parece tão ruim assim, nas pernas há um torpor tão grande que dá a sensação de não se estar sobre a terra, mas sim sobre uma nuvem. Além disso, eu me impunha todo tipo de penitência: levantava-me de noite e ficava de joelhos, carregava pedras pesadas de um lugar para outro, andava descalço na neve e até prendia correntes no corpo. Só que, decorrido um certo tempo, fui um dia me confessar a um padre e então, de repente, me vi dominado por uma fantasia: aquele sacerdote, pensei, era casado, comilão e fumante; como ele poderia ouvir minha confissão e com que autoridade poderia absolver meus pecados se era mais pecador do que eu? Enquanto eu me abstinha até do azeite, ele com certeza comia esturjão. Procurei um outro padre, e esse, como se fosse de propósito, era balofo, vestia uma batina de seda que farfalhava como as roupas de uma senhora e além do mais cheirava a tabaco. Fui ao mosteiro para fazer o jejum que antecede a confissão e lá meu coração ficou inquieto, tudo dava a impressão de que os monges não viviam em conformidade com as regras monásticas. Depois disso, não consegui de maneira alguma encontrar uma missa que me agradasse: em um lugar, celebravam depressa demais; no outro, veja só, não cantavam como se deve; em um terceiro, o sacristão tinha a voz fanhosa... Um dia aconteceu, e que Deus perdoe este pobre pecador, de eu estar em uma igreja e meu coração tremer de cólera. Como se pode pensar em rezar desse jeito? E me parecia que as pessoas na igreja não faziam o sinal da cruz direito, não ouviam a missa direito; todos que eu olhava, ou estavam bêbados, ou eram comilões, ou fumantes, ou depravados, ou viciados em jogar baralho, e só eu vivia de acordo com os mandamentos. O demônio é astuto e não dorme, tudo isso cresceu em mim cada vez mais, parei de cantar no coro e já não tinha vontade nenhuma de ir à igreja; eu me imaginava como um homem virtuoso e a igreja, por sua imperfeição, não servia para mim, ou seja, à semelhança do anjo decaído, eu, em meu orgulho, me julgava de um primor inconcebível. Depois disso, comecei a tomar algumas iniciativas para criar a minha própria igreja. Aluguei de uma pequeno-burguesa surda um aposento minúsculo, longe da cidade, perto do cemitério, e montei um oratório, tal como na casa do meu primo, só que eu tinha castiçais e um turíbulo de verdade. Nesse meu santuário, eu seguia os preceitos dos mosteiros do monte Athos, ou seja, todo dia as matinas começavam obrigatoriamente a meia-noite e, nas doze festas mais veneráveis, as vésperas duravam dez ou mesmo doze horas. Todavia, enquanto os monges, segundo as regras, por ocasião da leitura dos Salmos e do Velho Testamento, podem ficar sentados, eu queria ser mais agradável a Deus do que eles e me mantinha de pé o tempo todo. Lia e cantava com voz arrastada, com lágrimas, suspiros, de braços erguidos, e logo depois da prece, sem nem sequer dormir, eu ia para o trabalho e não parava de rezar, mesmo durante o serviço. Assim, a notícia correu pela cidade: Matviei é santo, Matviei cura os doentes e os loucos. É claro que não curei ninguém, mas é sabido que, tão logo surge um cisma e uma heresia assim, as mulheres não dão mais sossego. Ficam iguais a moscas no mel. Diversas mulheres do povo, jovens e velhas, acostumaram-se a vir me visitar, punham-se aos meus pés para me saudar, beijavam minhas mãos e gritavam que eu era um santo e assim por diante, e uma delas chegou ao ponto de enxergar uma auréola acima da minha cabeça. O oratório começou a ficar pequeno, aluguei um cômodo maior e entre nós formou-se uma autêntica torre de Babel, o demônio se apossou de mim definitivamente e, com seus pés de casco fendido, vedou a luz dos meus olhos. Era como se tivéssemos todos ficado possessos. Eu lia as orações, as mulheres jovens e velhas cantavam e, desse modo, por ficarem muito tempo sem comer e sem beber, por permanecerem de pé 24 horas seguidas ou mais, elas de repente começavam a ter uma tremedeira, como que atacadas pela febre, depois disso uma mulher aqui e outra ali deixavam escapar um grito, e era medonho! Eu também me sacudia todo, como um judeu na frigideira, e nem mesmo sabia por que razão, e nossas pernas começavam a pular. Espantoso, de fato: sem que a gente quisesse, as pernas pulavam e os braços abanavam; e, depois disso, entre gritos e vozes esganiçadas, todos dançávamos e corríamos até não agüentar mais. Dessa forma, em meio a um desvario selvagem, eu me afundei na depravação.
O guarda pôs-se a rir. Porém, ao notar que mais ninguém ria, ficou sério e disse:
- É a seita dos bebedores de leite. Li que no Cáucaso são todos assim.
- Mas nenhum raio veio me fulminar – prosseguiu Matviei, depois de fazer o sinal da cruz, voltado para o ícone, e de movimentar os lábios rapidamente. – No outro mundo, minha falecida mãezinha deve ter rezado por mim. Quando todos na cidade já me veneravam como a um santo e até as damas e os senhores nobres haviam começado a me visitar às escondidas, em busca de consolo, certo dia fui à casa do nosso senhorio, Óssip Varlâmitch, pedir perdão, pois era o dia do perdão, e ele então fechou a porta à chave e ficamos nós dois sozinhos, cara a cara. E ele começou a me recriminar severamente. Tenho de salientar para os senhores que Óssip Varlâmitch não possuía instrução, mas era um homem de vasta inteligência e todos o respeitavam e temiam, porque levava uma vida austera, piedosa e era muito trabalhador. Tinha sido prefeito da cidade e estaroste durante uns vinte anos, talvez, e fez muita coisa boa; calçou de cascalho a rua Novo-Moscóvskaia inteira, pintou a catedral e revestiu as colunas com uma imitação de malaquita. Porém, depois de trancar a porta, ele me disse: “Há muito tempo que quero pôr minhas mãos em você, seu isso e aquilo... Você acha que é um santo? Não, você não é santo coisa nenhuma, mas sim um apóstata, um herege e um canalha!”. E continuou a falar assim por muito tempo... Não sou capaz de expressar para os senhores o modo como ele falava, tinha um jeito intelectual, como se lesse em um livro, e era muito comovente. Falou durante duas horas. Ele me impressionou com as suas palavras, os meus olhos se abriram. Eu ouvi, ouvi e de repente me pus a soluçar! “Seja um homem comum”, disse ele, “coma, beba, vista-se e reze como todo mundo, tudo que estiver fora do habitual vem do diabo. As suas correntes”, disse ele, “vêm do diabo, os seus jejuns vêm do diabo, o seu oratório vem do diabo; tudo isso é vaidade”, disse ele. No dia seguinte, a primeira segunda-feira da quaresma, Deus me fez cair doente. Fiquei abatido, levaram-me ao hospital; eu sofria ao extremo, chorava amargamente e tremia. Pensei que, do hospital, iria direto para o inferno e por pouco não morri. Padeci no leito da minha enfermidade durante seis meses e, logo que recebi alta, passei a cumprir minhas devoções da maneira devida e me tornei de novo um homem. Óssip Varlâmitch me mandou de volta para minha casa, e disse: “Lembre-se, Matviei, aquilo que está fora do habitual vem do diabo”. E agora eu como e bebo, igual a todo o mundo, e rezo, igual a todo o mundo... Se agora, por acaso, encontro um padre que cheira a tabaco ou a vinho, não me arrogo o direito de condená-lo, porque um padre é um homem como qualquer outro. Mas, assim que começam a espalhar que apareceu um santo em uma cidade ou em uma aldeia, um homem que dizem ficar semanas sem comer e que estabeleceu regras próprias de culto, já sei de onde vem tudo isso. Eis aí, meus senhores, a história de minha vida. Agora eu também, como Óssip Varlâmitch, não canso de dar bons conselhos ao meu irmãozinho e à minha irmãzinha, e os repreendo, mas é o mesmo que pregar no deserto. Deus não me deu esse dom.”
(Anton Tchekhov, O Assassinato)
Tradução de Rubens Figueiredo
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